Nos anos 1980, em plena Guerra Fria tardia, a Marinha dos Estados Unidos flertou com uma ideia que hoje parece coisa de ucronia: colocar MiG-21 em cores norte-americanas para treinar pilotos de caça. O projeto recebeu a designação Vought V-601 e, na prática, seria um Chengdu F-7M Airguard chinês – derivado direto do MiG-21 – profundamente “americanizado” em termos de aviônicos, sensores e sistemas.

Contexto: a busca por um novo “aggressor” supersônico

Desde o fim dos anos 1960, com a criação da Navy Fighter Weapons School, o famoso TOPGUN, a US Navy investia pesado em DACT (Dissimilar Air Combat Training), o treinamento em combate aéreo contra aeronaves que imitassem o comportamento de caças soviéticos. A-4, T-38/F-5 e T-2 cumpriram esse papel com competência, mas, na virada para os anos 80, já não simulavam adequadamente a geração de MiG-29 e Su-27 que começava a despontar no bloco oriental.

Em 1983, a Marinha formalizou a necessidade de um Naval Supersonic Adversary Aircraft (NSAA): cerca de 24 aeronaves novas, supersônicas, dedicadas ao papel de aggressor. Duas propostas principais apareceram:

  • General Dynamics F-16N – versão “seca” do F-16C para DACT, baseada nos blocos em produção na época;
  • Vought V-601 – um MiG-21/F-7M chinês, modificado e recertificado com eletrônica ocidental para uso pela US Navy.

O F-16N acabaria vencendo, mas o V-601 deixou um rastro fascinante de “e se…?”.

Base da conversão: Chengdu F-7M Airguard

A espinha dorsal do V-601 seria o Chengdu F-7M Airguard, versão de exportação modernizada do J-7 chinês (uma cópia licenciada do MiG-21F-13).

O F-7M trazia, em linhas gerais:

  • motor turbojato WP-7BM, com empuxo na casa de 64 kN com pós-combustão;
  • velocidade máxima próxima a Mach 2 e teto operacional acima de 18.000 m;
  • raio de combate de algumas centenas de quilômetros, dependendo de tanques externos;
  • estrutura clássica de MiG-21: asa em delta, entrada de ar frontal e estabilizadores traseiros pronunciados.

Na configuração original, o Airguard já era um passo à frente dos primeiros J-7, incorporando um pacote de aviônicos anglo-chineses, com destaque para:

  • HUD/ computador de tiro GEC-Marconi Type 956 HUDWAC;
  • radar de telemetria Skyranger, otimizado para emprego de canhão e mísseis IR;
  • novo computador de dados de ar, altímetro radar, IFF e rádios VHF/UHF mais seguros;
  • melhorias na geração elétrica para alimentar essa eletrônica.

A ideia da Vought era receber células de F-7 diretamente da China (aproveitando a aproximação sino-americana pós-anos 70) e completá-las nos EUA com uma nova “espinha dorsal” eletrônica, certificada segundo padrões da US Navy.

Aviónicos: transformando um Fishbed em “naval supersonic adversary”

O coração do projeto era justamente a americanização dos sistemas de missão. O relatório Americanization of MiG-21 aircraft da LTV e a literatura posterior descrevem um pacote bem ambicioso para o V-601:

Primeira fase – pacote básico USN

  • Rádio UHF AN/ARC-159;
  • Rádio VHF AN/VRC-20B ou equivalente;
  • Transponder/IFF TDR-90;
  • Sistema de navegação TACAN AN/ARN-118;
  • Sistema de pouso por instrumentos ILS AN/ARA-63B;
  • Intercomunicador de cabine AIC-25;
  • Altímetro barométrico AAU-23/A;
  • Horizonte artificial ID-1329/A e outros instrumentos “padrão OTAN”;
  • Sistema de aviso de incêndio no motor e monitor de temperatura de gases (EGT) revisado;
  • Ajustes no regulador de oxigênio;
  • Inversor DC-AC e chargers para baterias níquel-cádmio;
  • Cabeamento e interface para o pod TACTS (Tactical Aircrew Combat Training System), indispensável para registrar e debriefar cada combate simulado.

Segunda fase – pacote “turbinado”

Em 1984, a proposta cresceu. A Vought passou a ofertar também:

  • radar AN/APG-69, também associado ao projeto do F-20 Tigershark, com capacidade look-down;
  • sistema inercial de navegação INS AN/ASN-130;
  • segundo rádio VHF e controle de comunicações mais elaborado;
  • gravador de dados de voo M-10 e gravador de esforços estruturais MCR-1;
  • lançadores de chaff e flares AN/ALE-39;
  • provisão para receptor de alerta radar AN/ALR-67;
  • gancho de parada e reforços estruturais traseiros, permitindo operações em porta-aviões – o que teria feito do V-601 o primeiro “MiG-21 naval” da história, ainda que apenas em ambiente de treinamento.

Para reduzir custos, rodadas posteriores de negociação chegaram a retirar itens como o segundo VHF e o ILS, mantendo o essencial para o papel de aggressor e as interfaces de treinamento e segurança.

Cockpit e ergonomia: um MiG com “cara” de jato da US Navy

Diagramas divulgados na época mostram um painel totalmente reorganizado para padrões ocidentais: instrumentos principais em “T”, HUD integrado ao radar, rádios e navegação à esquerda, controles de armamento e sistemas TACTS à direita.

Para o piloto norte-americano, acostumado a F-4, F-14 ou A-7, a transição seria muito menos traumática do que sentar num cockpit soviético puro. Ao mesmo tempo, a “alma” aerodinâmica continuava sendo de MiG-21/F-7: asa em delta, tomada de ar frontal, aceleração, taxa de subida e comportamento em alta velocidade muito próximos aos Fishbed reais que ele poderia encontrar na vida real.

Assento ejetável e sistemas de sobrevivência

O F-7M de série utilizava um assento ejetável de concepção chinesa, já em nível compatível com o conceito de zero-altura/baixa velocidade para a época.

Nos estudos iniciais, a Vought considerou substituir o conjunto por um assento ocidental (como um Martin-Baker), principalmente por padronização logística e certificação de segurança. O pacote de “americanização” menciona explicitamente ajustes no sistema de escape e no fluxo de oxigênio, o que sugere no mínimo uma reengenharia pesada do conjunto de ejeção.

Sob forte pressão de custo, porém, as versões finais da proposta passaram a considerar a manutenção do assento original, desde que atendesse aos requisitos mínimos da Marinha, com foco nas melhorias de monitoramento (sensores, alarmes) e na alimentação elétrica de emergência.

Em resumo: nada de um assento “estrela de catálogo” como nos jatos de exportação da época, mas um sistema de escape oriental revisado sob supervisão americana.

Radar e armamento: simular o inimigo, não vencer guerras

O foco do V-601 nunca foi virar caça de primeira linha, e sim um adversário crível em treinamento. Mesmo assim, o radar APG-69, com capacidade look-down, permitiria simular razoavelmente o envelope de interceptação de caças contemporâneos, bem como o emprego de mísseis guiados por radar semi-ativo (como o AIM-7), pelo menos em termos de tática e procedimentos.

A célula básica do F-7M levava:

  • dois canhões de 30 mm sob a fuselagem;
  • até quatro pilones sob as asas, combinando mísseis IR (PL-2/-5/-7 ou equivalentes ocidentais), foguetes e bombas de até 500 kg;
  • tanque central e tanques subalares para ampliar o raio de ação.

Para a US Navy, o interesse maior era poder reproduzir visual e cinematicamente o perfil de um MiG-21 ou de um F-7 exportado, inclusive em cenários de baixa altura, entradas de mergulho e engajamentos BVR simulados.

Por que o V-601 morreu no papel?

Apesar de tecnicamente viável – havia um plano claro para enviar células e motores da China e finalizá-los com a integração dos sistemas nos EUA – o V-601 esbarrou em três fatores principais:

  1. Política: comprar “MiGs chineses” para uso pela US Navy, ainda que totalmente reconfigurados, era combustível perfeito para polêmicas no Congresso e na imprensa.
  2. Industrial: o lobby por manter linhas de produção domésticas, como a do F-16, pesou muito; o F-16N era um produto 100% americano, com forte apoio político e industrial.
  3. Operacional: a Marinha avaliou que o F-16N poderia simular não apenas MiG-21, mas também caças de quarta geração (MiG-29, Su-27), oferecendo maior versatilidade no longo prazo.

Enquanto a decisão não vinha, a US Navy chegou a alugar 24 IAI Kfir de Israel como solução tampão. No fim, decidiu pela compra de 26 F-16N/TF-16N (22 monopostos e 4 bipostos), com entregas entre 1987 e 1988, o que sepultou de vez a possibilidade de ver um “MiG-21 naval” com estrelas e barras.

E o legado?

Embora o Vought V-601 nunca tenha saído do papel, a experiência acumulada rendeu propostas de modernização de MiG-21 para países como Egito e Paquistão – incluindo a instalação de radares ocidentais (APG-69, APG-159, APG-67), integração de mísseis como o AIM-7 Sparrow e até estudos com motores GE F404 e PW1120. Nenhum desses programas prosperou comercialmente, mas mostram como a “americanização” de caças do Pacto de Varsóvia parecia uma via tentadora naquele contexto.

Para quem gosta de “caminhos não trilhados” da aviação militar, o Vought V-601 é um prato cheio: um caça soviético redesenhado pela Vought, com coração eletrônico americano, destinado a voar em porta-aviões da US Navy – e que, por pouco, não entrou em serviço ao lado do F-16N nos esquadrões aggressor.

Referências