Fé incansável

Arquivos de guerra Esgotados no campo de batalha, brasileiros se amparavam na religião para enfrentar dureza dos combates

Edson Luiz - Da equipe do Correio Brasiliense

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Cemitério militar brasileiro. Pistóla, Itália, 1945.


Lucindo, Campos, Pires, Luiz e Silva atuavam em guarnições diferentes nos campos de batalha da Itália. Poderiam nem se conhecer, mas tinham algo em comum, como a maioria dos brasileiros que foram à guerra: coragem, fé e amor à família. Mortos em combate, todos carregavam imagens de santos, crucifixos, orações e fotografias da família, quando tombaram.

Os registros de óbitos de alguns dos combatentes durante a Segunda Guerra mostraram esse tipo de apego. Silva, um sargento enterrado em Pistóia, tinha consigo uma medalha religiosa, cinco correspondências do Brasil, 10 fotografias e dois crucifixos. Campos morreu em ação em 14 de abril de 1945, em Montese. Católico, como descreve o atestado de óbito, também carregava consigo artigos religiosos. Tinha um manual de orações, duas medalhas, quatro imagens de santos e um rosário.

O relatório final da guerra feito pelo general Mascarenhas de Morais mostra que a fé não era a única semelhança entre os pracinhas brasileiros. “Não desejou a guerra, e preferia nela não morrer, podendo assim regressar à pátria, mas nunca colocou esses fatores diante de seu orgulho de ser valente e de cumprir as ordens recebidas. Neste particular, o soldado brasileiro sempre revelou um amor próprio excepcional”, elogiou o general.

O pracinha brasileiro não suportava perder. “Quando se via, lado-a-lado com outros soldados aliados, em geral os americanos, fazia questão de provar que era melhor do que eles, e que um brasileiro não pode perder em confronto com qualquer soldado, por melhor que seja”, observou o comandante da FEB, ressaltando que a tropa brasileira foi a que mais rápido se adaptou à zona de guerra na Itália. Rapidamente se adaptou ao vestuário e enfrentou o inverno rigoroso com criatividade. “Chegou à conclusão de que papel picado, palha, penas de aves ou tiras finas de cobertor, colocados no interior dos galochões, constituíam magnífico expediente para defender os pés do frio terrível”, descreve Mascarenhas de Morais, sobre a invenção dos soldados.

Feijão e farinha

Não sem reclamar um pouco, como afirmou o general em seu relatório, o pracinha se adaptou à comida americana, rica em nutrientes, mas não dispensava os alimentos brasileiros. Isso obrigou o comando da FEB a providenciar os mantimentos que foram racionados no Brasil e entregues nos campos de batalha em pequena quantidade. Mesmo assim, durante o ano de 1944, foram consumidos, por exemplo, 290,7t de açúcar, 195t de arroz, 117,8kg de farinha de mandioca e 195,6t de feijão, os produtos prediletos dos soldados.

Durante a guerra, os soldados descendentes de outras nacionalidades ficaram sob observação dos oficiais. “Tendo sido recrutados e convocados para a incorporação na FEB, jovens brasileiros de origem teuta (germânica) e italiana, era natural que observássemos, particularmente, o comportamento ético-militar destes rapazes, na presunção e com a desconfiança preconcebida de que as leis atávicas de hereditariedade gritassem mais alto na invocada ‘voz do sangue’, do que o sentimento patriótico pela terra que lhes deu o berço”, narrou em um relatório secreto o ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, ao presidente Getúlio Vargas. Na avaliação de Dutra, a desconfiança não foi necessária, já que se mostraram bons soldados.

Depois dos bombardeios diários, os oficiais visitavam os feridos nas enfermarias, uma forma de levar apoio. “Após os combates, a preocupação única dos hospitalizados, sem exceção, mesmo entre os mutilados, era saber se a sua companhia ou seu pelotão haviam mantido as posições ou atingido e conquistado o objetivo que começaram a atacar”, narrou Mascarenhas de Morais. “E riam, como crianças, quando lhes declarava que tudo corria muito bem e que fizemos grande número de prisioneiros.” Entre os feridos, conforme o comandante da FEB, estavam vários soldados que praticaram atos de heroísmo.

Sem descanso

Um dos casos era de um sargento comandante de grupo de combate. Ferido, soube que não poderia ir ao campo de batalha na ação que seria desencadeada no dia seguinte em Monte Castelo. Com a perna com pouca sensibilidade, implorou a seu capitão para permanecer nas suas funções. O oficial não permitiu. “A aflição estampada na fisionomia deste jovem ante a justa negativa de seu chefe, bem atestava a sua angústia por não poder cumprir o que considerava seu dever”, descreveu o comandante da FEB. Para incentivar os soldados, seus principais feitos eram publicados no Cruzeiro do Sul, o jornal publicado pela FEB destinado aos pracinhas.

Mas durante algum tempo, os pracinhas deram sinais de que, sem repouso, não poderiam prosseguir nos campos de batalha. Isso aconteceu principalmente na tomada de Monte Castelo, onde muitos soldados sentiram a pressão e baixaram no serviço médico. Chegaram a ser taxados de simuladores. “A recusa para retornar ao front manifesta-se também, em alguns casos, é verdade, raríssimos mesmos, pelos que, perfeitamente curados, continuam com o seu cortejo de queixas. São, na linguagem médica, os simuladores”, observou o major médico Sady Cohen Fischer, em um relatório de dezembro de 1944.

“Será, pergunta que se impõe, admissível que esse homem que ontem tão bravamente se conduziu na linha de frente, e que heroicamente soube elevar bem alto o nome, o prestígio e as tradições do Exército do Brasil, (seja) na verdade, um simulador?”, perguntou Sady. “No período de paz, sim. Aqui, não. É como tantos, um esgotado, um estafado físico e mental, cujo psiquismo , profundamente abalado, avança muito além do que constitui o equilíbrio mental”, acrescentou o oficial médico.

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Canção do Expedicionário

Letra: Guilherme de Almeida Música: Spartaco Rossi

Você sabe de onde eu venho ?
Venho do morro, do Engenho,
Das selvas, dos cafezais,
Da boa terra do coco,
Da choupana onde um é pouco,
Dois é bom, três é demais,
Venho das praias sedosas,
Das montanhas alterosas,
Dos pampas, do seringal,
Das margens crespas dos rios,
Dos verdes mares bravios
Da minha terra natal.

Por mais terras que eu percorra,
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá;
Sem que leve por divisa
Esse “V” que simboliza
A vitória que virá:
Nossa vitória final,
Que é a mira do meu fuzil,
A ração do meu bornal,
A água do meu cantil,
As asas do meu ideal,
A glória do meu Brasil.

Eu venho da minha terra,
Da casa branca da serra
E do luar do meu sertão;
Venho da minha Maria
Cujo nome principia
Na palma da minha mão,
Braços mornos de Moema,
Lábios de mel de Iracema
Estendidos para mim.
Ó minha terra querida
Da Senhora Aparecida
E do Senhor do Bonfim!

Por mais terras que eu percorra,
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá;
Sem que leve por divisa
Esse “V” que simboliza
A vitória que virá:
Nossa vitória final,
Que é a mira do meu fuzil,
A ração do meu bornal,
A água do meu cantil,
As asas do meu ideal,
A glória do meu Brasil.

Você sabe de onde eu venho ?
É de uma Pátria que eu tenho
No bojo do meu violão;
Que de viver em meu peito
Foi até tomando jeito
De um enorme coração.
Deixei lá atrás meu terreno,
Meu limão, meu limoeiro,
Meu pé de jacarandá,
Minha casa pequenina
Lá no alto da colina,
Onde canta o sabiá.

Por mais terras que eu percorra,
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá;
Sem que leve por divisa
Esse “V” que simboliza
A vitória que virá:
Nossa vitória final,
Que é a mira do meu fuzil,
A ração do meu bornal,
A água do meu cantil,
As asas do meu ideal,
A glória do meu Brasil.

Venho do além desse monte
Que ainda azula o horizonte,
Onde o nosso amor nasceu;
Do rancho que tinha ao lado
Um coqueiro que, coitado,
De saudade já morreu.
Venho do verde mais belo,
Do mais dourado amarelo,
Do azul mais cheio de luz,
Cheio de estrelas prateadas
Que se ajoelham deslumbradas,
Fazendo o sinal da Cruz !

Por mais terras que eu percorra,
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá;
Sem que leve por divisa
Esse “V” que simboliza
A vitória que virá:
Nossa vitória final,
Que é a mira do meu fuzil,
A ração do meu bornal,
A água do meu cantil,
As asas do meu ideal,
A glória do meu Brasil.


Arquivos de guerra - Tufão na alma, dores no corpo

Bombardeios incessantes quase quebraram heróica resistência de pracinhas. Quarta parte da série de reportagens baseada em documentos secretos da FEB mostra que permanência de brasileiros no front era maior do que a dos soldados americanos

Edson Luiz - Da equipe do Correio Brasiliense



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Enfermeiras Brasileiras do destacamento precusor de saúde

15 de dezembro de 1944,
7TH Station hospital,
Livorno, Itália.

“Doutor, eu desejo voltar para a linha de fogo, mas não tenho no momento confiança em mim. Parece que, ao regressar e ouvir o primeiro tiro, passarei a cometer desatinos, não me responsabilizando pelo que possa acontecer. O desabafo foi de um soldado brasileiro ao major-médico Sady Cahen Fischer, que fez um relatório dramático a seus superiores mostrando que os nossos combatentes já estavam no limite de suas forças na tentativa da tomada de Monte Castelo. A resistência dos pracinhas estava sendo heróica, levando-se em conta a situação e o clima adversos, revela a quarta parte da série de reportagens baseada em documentos secretos da FEB.

Ao contrário das tropas americanas, os soldados da Força Expedicionária Brasileira (FEB) não tinham repouso e passavam até dois meses no campo de batalha. O mês de dezembro, quando aconteceu a última tentativa frustrada de tomar a região, foi o que levou mais pracinhas para o posto de neuropsiquiatria. Extremamente cansados, com problemas nervosos, ansiedade, medo e depressão. “Parece-me que se trata, no caso concreto, de verdadeira estafa física e moral”, descreveu Sady para seu superior.

Forte, tranqüilo, o soldado Azevedo, 26 anos, não sofria de qualquer problema de saúde antes de ir à guerra. Artilheiro, chegou à Itália e logo foi para as frentes de combate. Até então, nada sofria. Mas quando seu grupo mudou de posição ele não era mais o mesmo. “Um tufão se levantou na alma daquele artilheiro e as coisas mudaram de rumo”, constatou o capitão Mirandolino Caldas, chefe do setor de neuropsiquiatria. A notícia de que os bombardeiros alemães estavam próximos transformaram a vida de Azevedo. O soldado falava em uma “granada do tempo” que lhe perseguia e teve que ser internado.

“Levante-se”, gritou o capitão Cabral ao soldado Vieira, que fora levado ao hospital queixando-se de paralisia nas pernas. Sem que sua ordem fosse cumprida, o oficial novamente apelou. “Levante-se, levante-se, levante-se.” Aos poucos, Vieira tentava se manter em pé, escorando-se em algum móvel. O diagnóstico era hemiplegia, causada pelo cansaço dos campos de batalha. Mota, 23 anos, caiu bruscamente dentro de um caminhão à caminho do front. Nunca teve nenhum tipo de doença. “Tenho vontade de gritar, mas não posso. Estico as pernas e os braços, ouço tudo que falam perto de mim, mas não posso responder”, contou Mota. Seu primeiro ataque aconteceu quando soube que iria para a guerra.

“A resistência física e moral tem, como tudo na vida, um limite máximo de tolerância. Rompida essa resistência, esse equilíbrio, surgem distúrbios vários, independente do fator vontade. Tenho a impressão que o nosso Exército está carecendo de um repouso absoluto, feito bem longe do front, onde durante este período deve desaparecer por completo todo e qualquer indício de luta”, recomendou Sady. “Parece ser a melhor medida que se impõe, com o fim de evitar graves conseqüências, que na minha opinião não tardarão a desencadear”, acrescentou.

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Sofrimento secreto

A missão perigosa e delicada de reconhecimento levou o cabo Moreira, de 24 anos, quase à loucura. Falava palavras desconexas, sempre intercaladas por gritos de dor. “Parecia estar despertando de um sono profundo, ou saindo de um estado de choque”, relatou o capitão Cabral. Onofre, um cabo paulista de 23 anos, também sentia muitas dores de cabeça, o que era comum entre os soldados que estavam nas frentes de batalha. Chegou a perder os sentidos algumas vezes, em conseqüência dos freqüentes ataques do inimigo sobre sua posição. “Tratava-se, evidentemente, de mais um estafado em crise ansiosa”, diagnosticou Cabral.

Os relatórios do serviço médico da FEB eram todos secretos ou reservados, e sua circulação era restrita para evitar que chegasse, de alguma forma, às mãos dos alemães, que mantinham Monte Castelo sob seu domínio. Com isso, mantinha-se em segredo a situação debilitada das tropas brasileiras. “A psicologia do momento, onde tudo conspira contra o combatente (desconforto, noites mal dormidas, atenção permanente pelas necessidades do momento, mal alimentados, molhados, etc.) nos ensina que os sinais supra citados podem se fazer sentir a qualquer momento e que compete aos chefes, aos nossos superiores, que isso aconteça”, alertou Sady.

Nos relatórios, os médicos observam que, depois do período de tratamento — raramente mais que uma semana —, os combatentes eram outras pessoas. Azevedo, Vieira, Mota, Moreira e Onofre voltaram para o campo de batalha. “O paciente, que a princípio não podia sequer ouvir falar na sua volta à artilharia, foi melhorando gradativamente. E no dia em que lhe demos alta não teve a menor hesitação em partir”, contou Cabral, referindo-se a Azevedo. Depois de ouvir uma preleção patriótica dos médicos, ele chorou e se despediu dizendo que haveria de cumprir com seu dever. Dois meses depois, os cinco estavam entre os pracinhas da FEB que tomaram Monte Castelo.

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Tenho vontade de gritar, mas não posso. Estico as pernas e os braços, ouço tudo que falam perto de mim, mas não posso responder

Soldado Mota, acamado com hemiplegia por absoluto cansaço de guerra
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Desvalorizadas, mas guerreiras

Elas ganhavam menos que suas colegas norte-americanas, com quem trabalhavam desempenhando as mesmas funções. Também não tinham patentes como as demais estrangeiras presentes na Segunda Guerra. As 73 enfermeiras que foram para a Itália junto com as tropas da Força Expedicionária Brasileira (FEB), porém, nada ficaram devendo às suas companheiras de profissão. Ao contrário, receberam elogios de seus superiores e dos médicos que atuavam nos hospitais que atendiam os feridos na batalha.

"A nossa enfermeira iria desempenhar no teatro de operações a missão profissional e de representante das virtudes da mulher brasileira", escreveu Mascarenhas de Moraes em seu relatório final sobre a guerra. Segundo o comandante da FEB, as profissionais tiveram que superar as adversidades. "Lutaram contras as condições hostis, sofrendo ainda no Brasil a maledicência impatriótica de alguns", afirmou o general. Das 73 enfermeiras que foram para a Europa, 63 pertenciam ao Exército e as demais à Aeronáutica.

Para tentar se igualar às colegas americanas, as enfermeiras brasileiras ganharam a patente de segundo tenente, mas com salários inferiores aos que ganhavam os homens neste mesmo posto. O recrutamento, segundo o relatório de Mascarenhas de Morais, seria apenas de mulheres de elevado potencial cultural - os principais grupos seriam da Escola de Enfermagem Ana Nery, do Rio de Janeiro. (EL)