A Guerra Fria durou mais de 40 anos, e foi repleta de incidentes e acidentes relacionados ou não com a aviação. Alguns foram até engraçados, como o caso do piloto alemão que invadiu a União Soviética com um Cessna, ou mais trágicos, como o Incidente de Palomares, ambos reportados aqui nesse blog em artigos passados.
Boeing B-47B
Podem ser considerados muito graves, é claro, qualquer acidente ou incidente que envolva armas nucleares. De fato, durante a Guerra Fria, era comum aeronaves americanas, da OTAN ou soviéticas, voarem com bombas nucleares ativas a bordo, muitas vezes em manobras de treinamento. Os americanos chamam esses incidentes envolvendo armas nucleares com o nome código de Broken Arrow.

Felizmente, até hoje, nenhum incidente Broken Arrow resultou em explosão atômica acidental. Mas, somente os Estados Unidos reconhecem oficialmente mais de 30 desses incidentes. Pior, o Pentágono admite oficialmente que, ao menos, 10 armas nucleares foram perdidas nesses incidentes e jamais foram resgatadas. Em alguns casos, sequer se sabe onde as armas foram realmente perdidas. Obviamente, outras armas podem ter sido perdidas por acidente e esses ainda estarem classificados como "secretos".
Boeing B-47B muito similar ao avião acidentado
Um dos mais conhecidos incidentes Broken Arrow aconteceu na noite de 4 para 5 de fevereiro de 1958. Dois bombardeiros Boeing B-47 foram designados para uma missão simulada de bombardeio nuclear, na Base Aérea MacDill, na Flórida. Essas missões eram muito comuns naquela época, assim como era comum levar armas nucleares ativas a bordo, para acostumar os tripulantes com a pressão e a responsabilidade de ter um artefato desses na aeronave.
Boeing B-47B
O B-47B-50-BW #51-2349, com código de chamada de rádio Ivory Two, deveria seguir atrás do avião líder da missão, o B-47 Ivory One, voando para o norte, sobre o continente, executar sua missão simulada, em grande altitude, 38 mil pés, e retornar a MacDill. Ambas as aeronaves levavam a bordo uma bomba termonuclear Mark 15, que tinha aproximadamente 3,8 Megatons de poderio explosivo, cada uma.
Bomba termonuclear Mk 15
O Ivory Two, comandado pelo Major Howard Richardson, também era tripulado pelo Primeiro Tenente Bob Lagerstron, co-piloto, e pelo Capitão Leland Woolard, navegador e operador de radar. A bomba Mk. 15 levada a bordo era a #47782. A missão era relativamente simples, mas as tripulações deveriam ficar atentas a eventuais interceptações simuladas de unidades de caça em treinamento.
Tripulação do Ivory Two
De fato, uma unidade da Guarda Aérea Nacional da Carolina do Sul, baseada em Charleston AFB, recebeu, às 00h 09min, um alerta para interceptação simulada de dois bombardeiros provenientes do sul. Essa unidade era equipada com aeronaves North American F-86L, uma versão modernizada dos velhos F-86D.
North American F-86L, semelhante ao acidentado
Três F-86L já estavam decolando e subindo apenas 5 minutos depois, para interceptar os dois bombardeiros B-47 de MacDill, que voavam em direção norte. Esses aviões estavam totalmente armados, com 24 foguetes de 70 mm cada um.

Após localizarem os bombardeiros, com o auxílio do radar de defesa aérea de solo, e voando a 35000 pés, os caças subiram e se posicionaram atrás do Ivory One, avião líder da formação. O radar de bordo detectou o Ivory One, e os caças bloquearam o alvo no radar, mas nem o radar de bordo e nem o radar de solo, detectaram o Ivory Two, que seguia o Ivory One, apenas uma milha atrás.
North American F-86L, semelhante ao acidentado
O F-86L-50-NA #502-10108, comandado pelo Primeiro Tenente Clarence A. Stewart, código de chamada Pug Gold Two, era o número 2 da formação, e quando se aproximou por trás do seu alvo, às 00h 33min 30seg de 5 de fevereiro, subitamente, se deparou com o não detectado Ivory Two do Major Richardson à sua frente.

Seu caça bateu na deriva do B-47, na fuselagem direita e depois no motor nº 6 do bombardeiro e a asa direita. O F-86 perdeu as duas asas, e o Tenente Stewart imediatamente ejetou, enquanto o seu avião caía e se espatifava sobre uma fazenda situada a 10 milhas a leste de Sylvania, Geórgia.

O Tenente levou nada mais do que 22 minutos até chegar de paraquedas ao solo, e não tinha ferimentos relevantes, devido ao acidente, mas suas mãos ficaram congeladas e ele passou cinco semanas no hospital militar até se recuperar totalmente.
Danos na fuselagem traseira do Ivory Two
Por sua vez, o Ivory Two estava severamente danificado. O motor #6 atingido perdeu um dos seus pinos de suporte, mas ainda ficou pendurado na asa num ângulo de 45 graus com a asa, inoperante, mas felizmente sem sinais de fogo. A longarina principal da asa quebrou-se, e o aileron direito foi seriamente danificado, ficando praticamente inoperante.
Em grandes altitudes, o B-47 estava quase impossível de ser pilotado, e Richardson somente pode obter controle abaixo de 20 mil pés.

Se o motor #6 caísse, a situação iria ficar ainda pior, pois isso poderia romper linhas hidráulicas ainda intactas, e poderia danificar outros sistemas na asa atingida.

O Major Richardson avaliou que o avião não tinha condições de retornar a MacDill, e procurou uma pista mais próxima. O avião não estava conseguindo manter altura, e o aeródromo adequado mais próximo era a Base Aérea Hunter, em Savannah, Georgia.
O motor #6 do Ivory Two quase caiu da asa
A pista de Hunter estava em reparos, e o Major Richardson avaliou que um acidente no pouso, tendo em vista as suas dificuldades com a aeronave, era provável. Todos os três tripulantes tinham a opção de ejetar, mas isso deixaria o avião, bastante grande, e sua terrível carga, uma bomba termonuclear, cair sobre alguma área habitada da Geórgia. Embora o risco de haver explosão nuclear acidental fosse considerado baixo, isso poderia acontecer, em tese, e a tripulação resolveu não apostar nisso.

A manutenção da altitude estava cada vez mais complicada, e com a possibilidade haver acidente no pouso, o Major Richardson resolveu descartar a sua carga, a bomba nuclear. O artefato não estava ativado, mas, para diminuir os riscos, Richardson resolveu sobrevoar o mar, em Wassaw Sound, a pouco mais de 25 Km de Savannahm abriu as portas de bomba, e a lançou, de 7200 pés de altitude. A bomba caiu ao sul da ilha de Tybee, em uma área onde a água tinha cerca de 40 metros de profundidade. Nenhuma explosão ocorreu.
Danos pesados na asa direita do Ivory Two
Descartar a bomba estava de acordo com a doutrina da Força Aérea, que levava em conta, em primeiro lugar, a segurança da tripulação.

O Ivory Two pousou sem maiores incidentes em Hunter AFB. Richardson recebeu uma medalha DFC (Distinguished Flying Cross), pela sua bravura e habilidade de conduzir a aeronave até um pouso seguro. O seu B-47, no entanto, estava tão danificado que jamais voltou a voar novamente.

Missões para a recuperação da bomba Mk 15 foram conduzidas, a seguir, por mais de 100 homens do Air Force 2700th Explosive Ordnance Disposal Squadron, mas o artefato afundou profundamente na areia e na lama daquelas águas rasas, e todos os esforços para recuperá-lo foram infrutíferos, apesar do uso de equipamentos sofisticados pela equipe de buscas.

Finalmente, a Força Aérea desistiu e suspendeu as buscas em 16 de abril. Ate´hoje, 60 anos passados, a bomba nuclear está lá, em Tybee Island, numa área frequentemente varrida pelas redes de pescar camarões. O local não é demarcado e nem de acesso restrito.
Estrutura da bomba Mk 15, de 3,8 Megatons
O Major Richardson afirma que o artefato estava, de fato, desarmado. Uma bomba termonuclear consiste basicamente de uma bomba atômica de plutônio, que explode para ativar um núcleo secundário, de urânio empobrecido ou levemente enriquecido, contendo uma mistura de gases deutério e trítio, isótopos de hidrogênio. Richardson tinha certeza de que  a parte de plutônio não estava dentro da bomba. Sua premissa baseia-s, principalmente,  no Formulário AL-569 Temporary Custodian Receipt (para manobras), que previa um "detonador" de treinamento, contendo chumbo, no lugar de plutônio. Richardson assinou esse documento e baseia nele para afirmar que é impossível detonar a bomba de Tybee Island, de qualquer forma possível.

Há sérias dúvidas de que isso seja verdade. Em 1966, em um depoimento no Congresso, o Secretário Assistente da Defesa, W. J. Howard, declarou que a bomba de Tybee Island era uma arma completa, uma bomba contendo uma cápsula nuclear ativa, e que essa era uma das duas armas perdidas naquela época contendo um detonador de plutônio.  

Seja como for, e em vista dos conflitos entre as normas previstas para o manuseio de armas nucleares naquela época, não se pode ter certeza alguma de qualquer coisa. Ninguém sabe, na verdade, se a bomba de Tybee Island era ativa ou não. A Força Aérea jamais reiniciou as buscas,
Segundo relatórios e estudos  hidrológicos, a bomba deve estar sob uma camada de 3 a 5 metros de lama e areia.
Mapa da área de Tybee Island

Alguns civis, como o Tenente Coronel da Reserva da Força Aérea Derek Duke, conduziram algumas buscas por sua própria conta. Depois de alguns esforços, em 2004, Duke afirma ter reduzido a área de buscas para o tamanho de uma campo de futebol.
Vista atual de Wassaw Sound
 Todavia, nada indica que o artefato esteja com algum tipo de vazamento de radiação, mesmo depois de 60 anos de corrosão. Houve detecção de radiação, mas que depois verificou-se ter originado da areia monazítica típica da região, um material naturalmente radioativo.
A bomba de Tybee ainda hoje, lança uma sinistra, mesmo que remota, possibilidade de uma explosão nuclear acidental, que poderia afetar severamente Savannah, que fica a 25 Km de distância, e uma grande área da Geórgia e da Carolina do Sul. Ainda existe a possibilidade de resgate da bomba por algum grupo terrorista, o que poderia ter consequências catastróficas, e que não é tão irrealista quanto se supõe.