Caça ao tesouro
Razões profundas explicam por que o Rafale
saiu na frente na guerra pelos bilhões de Brasil


Ivan Marsiglia - O Estado de S. Paulo

Em um bater de continência, o Ministério da Defesa anunciou que o Brasil vai gastar R$ 32,5 bilhões na compra de 36 caças, 4 submarinos, 51 helicópteros e tecnologia para se construir uma base, um estaleiro e um submarino de propulsão nuclear. É um dos maiores contratos do gênero no mundo, tudo para reaparelhar as Forças Armadas de um Brasil que se pretende grande - não apenas em tamanho.

A parte mais visível desse negócio estratosférico revelou-se segunda-feira, com a visita nada desinteressada do presidente francês, Nicolas Sarkozy, durante os festejos do 7 de Setembro, em Brasília. Sarkozy deixou a primeira-dama, Carla Bruni, em casa para oferecer ao colega Luiz Inácio Lula da Silva uma outra sorte de avião: os caças Rafale, da empresa francesa Dassault.

Embora mais caros, menos testados e preteridos em concorrências similares, os Rafales voaram rapidamente ao topo da preferência presidencial. E, quando Lula precipitou-se ao sinalizar que a compra já estava acertada, uma nota do Ministério da Defesa correu para retificar o fato - antes que ações legais dos demais concorrentes, os EUA, com seu caça Super Hornet, e a Suécia, com o Gripen NG, melassem o acordo bilionário.

Para Salvador Raza, diretor do Centro de Tecnologia, Relações Internacionais e Segurança (Cetris), a opção pelo Rafale é um “mau negócio” que só se justifica por razões literalmente profundas: a transferência de tecnologia francesa para a construção de um submarino nuclear brasileiro.

“O que dará dimensão estratégica ao Brasil será o submarino, não os aviões”, sustenta esse paulista de Ibitinga, de 53 anos, capitão de mar e guerra da reserva da Marinha, que divide seu tempo entre o Cetris, seu think tank em Campinas, e a cadeira de professor da National Defense University, o braço acadêmico do Pentágono em Washington.

Em um contexto de animosidades crescentes na América do Sul, Raza defende a necessidade de um acordo que não só recupere a capacidade de operação das Forças Armadas brasileiras, mas garanta acesso à tecnologia para que o País marche adiante com suas próprias pernas.

Faz sentido para o Brasil, com tantas outras carências, gastar R$ 32,5 bilhões em um acordo de compra de equipamento militar? Sim. O que esse dinheiro vai comprar não é aço, avião ou pedaços de um submarino. Vamos adquirir status de potência regional de fato. O acordo faz com que o Brasil mude de patamar em seu entorno estratégico. Esse valor, diluído ao longo de 20 anos, é perfeitamente custeável. E o dinheiro voltará multiplicado em forma de investimentos em infraestrutura, energia, etc. Estamos comprando também capacidade dissuasória. Para que, no raciocínio de um potencial agressor estrangeiro, os custos possíveis não compensem os ganhos prováveis.

A defesa da Amazônia e da riqueza do pré-sal tem sido evocada para justificar a compra, mas a ideia de reaparelhamento é de 1994, não? De antes, até. Os primeiros planos de reaparelhamento no Brasil são da década de 70. O que aconteceu agora foi que demos um salto, alicerçado pela Estratégia Nacional de Defesa. Essa estratégia está cheia de furos, mas tem um mérito: alavancou esse salto.

Uma interpretação das razões da suposta preferência brasileira por um acordo com a França diz o seguinte: diante da dependência de Colômbia e Peru em relação aos EUA e dos acordos da Venezuela com Rússia e Irã, o Brasil procura equilibrar o jogo na América do Sul ao se aproximar de uma terceira potência ocidental. É isso? Bobagem, não é assim que funciona. Esses alinhamentos não são pautados dentro de uma lógica política pensada. São muito mais tempestivos. A relação da Colômbia e do Peru com os EUA é motivada por interesses comuns. Mas a da Venezuela com a Rússia, não - representa, antes, um desejo de potência específico do governo Chávez. Acho que o presidente venezuelano foi muito inflado, sobrevalorizado. O que estamos vendo hoje na América Latina não são polarizações reais, mas uma multiplicidade de arranjos dinâmicos. Um país se alinha hoje com os EUA, amanhã com a China,volta aos EUA, e assim vai.

Quem tem as melhores Forças Armadas na América do Sul hoje? A força mais bem estruturada é a colombiana. A chilena vem em seguida. Outras que tinham certa pujança, como a Argentina, caíram violentamente. O Brasil deixou sucatear seus meios, mas tem diferencial por ser um país grande. Mas precisa se atualizar. O problema é que ainda não temos um bom projeto de força.

O ministro Nelson Jobim tem dito que a compra de armamento ocorre no contexto de um projeto de reformulação das Forças Armadas. Ocorre que esse projeto não foi bem desenhado. Ele é um arremedo, tem deficiências metodológicas e processuais enormes. Mas pelo menos mandou uma mensagem e alavancou as compras para essa potencialização do País. Uma reforma de fato tem que começar pela introdução de uma visão de defesa mais moderna em nossas escolas militares.

No afã de evitar a supremacia americana, o Brasil corre o risco de acabar dependente da França? Não. Os próprios americanos, quando montam seus navios modernos, usam sistema de direção australiano, peças canadenses... Há contribuições de vários países. A relação com a França obviamente cria um alinhamento tecnológico. Mas o Brasil é maduro o suficiente para evitar a dependência. Isso desde que haja um prazo mínimo de troca de tecnologia de dez anos. Se for menor estamos roubados, pois não teremos tempo de aprendê-la.

Terça-feira, Christian de Boissieu, membro do Conselho Econômico de Defesa francês, disse à revista ‘Le Point’ o seguinte: mesmo que o Brasil construa seu Rafale um dia, quando isso ocorrer a França já ‘terá passado ao avião do futuro’. Ele está errado. Boissieu não conhece o Brasil suficientemente, nem sabe que já estamos desenhando o avião after next. Já começamos a projetar o pós-Rafale. O assunto é confidencial, mas participei de estudos para essa próxima geração de jatos. Já se pensa até no modelo de empresa que eventualmente vai suceder a Embraer. Somos hoje mais sofisticados do que à época em que De Gaulle disse que o Brasil não era sério. Mas, para que isso se concretize, é preciso acelerar nossa maturação tecnológica. Aí entra o papel das nossas agências de fomento, Faperj, Fapesp, CNPq, Capes, Finep, que devem incentivar a pesquisa e formar cérebros.

Um ponto obscuro do acordo militar diz respeito à participação da empreiteira Odebrecht, sem licitação. Isso se justifica? É muito inusual. A não ser que a Odebrecht tivesse uma competência exclusiva para a tarefa, o que não é o caso. Cabe ao TCU (Tribunal de Contas da União) avaliar se houve alguma interferência política.

O presidente Lula se precipitou ao anunciar o acordo com a França? Foi uma precipitação, que causou um constrangimento na Força Aérea. Eles estavam se preparando para liberar a informação mais adiante. E a versão agora é: o presidente Lula não disse que íamos comprar, mas que as negociações continuavam, com ênfase no Rafale. A declaração do Ministério da Defesa foi oportuna, necessária e emergencial, para evitar ações legais por parte dos prejudicados.

Do ponto de vista técnico, quais as vantagens e desvantagens dos caças oferecidos pelos EUA, pela Suécia e pela França? O Hornet, americano, é um avião testado em combate que tem tecnologia madura, com integração de sistemas em nível bem elevado. É o caça dos sonhos dos pilotos, o herdeiro do mitológico F-15. Problema: depende muito de sistemas de terra, que chamamos de C4, que o Brasil ainda não tem - embora a estratégia nacional de defesa diga que teremos. O Gripen, da Suécia, cumpre bem as missões, tem bom desempenho, mas terá dificuldade de integração com sistemas de controle de terra não convencionais. É o mais barato dos três. Já o Rafale, da França, fica no meio do caminho. O ambiente de combate para o qual foi desenhado não tem a dimensão continental do Brasil. Impressiona pelo poder de fogo. Entretanto, é o mais caro.

Por que a preferência pelo Rafale, que além de mais caro é tido como um fracasso de venda no mercado mundial? A opção Rafale é ruim do ponto de vista técnico, operacional e tático. É um mau negócio, em minha opinião. E a melhor alternativa seria o caça americano, desde que o pacote de transferência de tecnologia fosse bem negociado. Se não, o Gripen. O Rafale ficaria em terceiro. Mas, para além do marketing político forte que a França fez, com sucesso, a verdade é que tudo - preço, modelo - é menos importante que a cereja do bolo do acordo: o submarino nuclear.

Como assim? O grau de dificuldade de se construir um submarino nuclear é muito superior ao da incorporação de tecnologia dos caças. E o que dará dimensão estratégica ao Brasil será o submarino, não os aviões. Toda prioridade será dada a isso.

Mas a França já avisou que não vai transferir tecnologia nuclear, só o casco do submarino. Sim, mas o Brasil já possui um reator nuclear pronto, em Iperó (cidade do interior paulista onde se localiza o Centro Experimental de Aramar, da Marinha brasileira). Será preciso apenas executar adaptações e encaixá-lo ali, como se fosse uma peça de lego. Além disso, teríamos acesso à tecnologia de construção da cabeça de proa do submarino, com os torpedos, que é sofisticadíssima e os franceses também se mostraram dispostos a transferir.

Na quarta-feira, os EUA disseram que vão incluir a transferência de tecnologia na proposta de venda dos Hornets, não podem fazer o mesmo com o submarino? Os americanos não dariam a (tecnologia) nuclear para a gente. E, mesmo que dessem, o custo do modelo deles é tão alto, e ele está tão acima das nossas necessidades, que não se justifica. Apesar dos processos de compra do submarino e dos caças terem sido conduzidos de maneira independente pela Marinha e pela FAB, a ideia de ser tudo francês de certa forma facilita um acordo futuro. Quer dizer, estamos fazendo errado, mas lá na ponta o erro será minimizado.

Ainda que a transferência de tecnologia dos EUA se restrinja aos caças, há dúvidas por conta da complicada legislação americana - que, entre outras coisas, oferece o ‘necessário’, um conceito vago - enquanto a França fala em ‘transferência ilimitada’. Como garantir que não sejamos logrados? Eu diria que ambos os pacotes são bons e os riscos são pequenos. As garantias que os EUA estão dando agora são até mais assertivas, porque os critérios já estão definidos pelo Congresso americano: o Brasil diz o que precisa e eles liberam de acordo com a necessidade. No caso da França, ao contrário, a “transferência ilimitada” é ainda uma carta de intenções. De toda forma, o processo está em aberto. A precipitação do presidente tirou a vantagem da França. E abriu brecha para os americanos e os suecos. Agora, caberá ao Congresso decidir. O perigo maior é o Brasil não saber o que quer.

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Num negócio da magnitude do FX2, é inevitável que o fator
político além do militar acabem por ter uma influência na decisão.

A história da escolha dos caças para a FAB
Por Nahum Sirotsky, correspondente iG em Israel

Pelo que me informei em fontes de acesso a qualquer um e grupos de diversos países, a fim de não ser influenciado por aqueles diretamente interessados no assunto, inclusive o Brasil, é possível concluir que o presidente Lula que diz não gostar de ler, já dispõe de todas as informações necessárias para decidir e optar pela melhor escolha do novo caça para a FAB. Escolha que não deve ter oposições, pois valerá por trinta anos.

A história de todo o processo, menos o final ainda não escrito, está na internet ao alcance de qualquer um. Inspirado na recordação de Antonio Olinto, colega de redação de “O Globo”, romancista, poeta, ensaísta, crítico literário, acadêmico, que faleceu há poucos dias, aos 90 anos, lembrei do que ouvi do general Charles De Gaulle, a maior personalidade francesa do século passado, criador dos Franceses Livres - tropa que retomou Paris na Segunda Guerra Mundial.

A França derrotada pelos alemães parecia moralmente arrasada. De Gaulle se manteve alto, no exílio, com a honra da pátria que por isto é um dos cinco países – membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas e um dos cinco grandes vendedores da guerra. Olinto, então jovem egresso de seminários mineiros, mandou um telegrama curtíssimo a Roberto Marinho, diretor de “O Globo”. Isso aconteceu muito antes da internet. “De Gaulle declara que os brasileiros não são gente séria”, dizia a manchete do jornal.

Mas, a FAB fez um trabalho técnico de Primeiro Mundo sobre qual o melhor caça para garantir a segurança nacional do país, que deve se tornar uma potência econômica, científica e militarmente tecnológica nas próximas décadas. Seríssimo trabalho. Lula poderá ter fortes argumentos para defender a escolha que fizer. Não sou nem jamais fui “lulista”. Nem petista. Interessa-me o país.

Foi o comando da FAB quem escolheu o Boeing americano, o Saab sueco e a Dassoult francesas como finalistas do processo de estudo iniciado há mais de um ano para substituir os velhos caças em uso, os Mirage franceses. A Comissão Gerencial do Projeto FX2, seu título, deve estar próximo de finalizar seu relatório de avaliação técnica, conforme o idioma oficial. O Alto Comando da FAB revisa e encaminha ao Ministro da Defesa que, pelo que sei da burocracia, leva ao presidente, que dá a decisão final.

“Nós faremos a análise técnica. O governo irá analisar a parte política e estratégia”’, escreveu o brigadeiro Juniti Saito, comandante da Aeronáutica, que chegou a pedir demissão por se sentir insatisfeito com coisas do Palácio, mas foi convencido a continuar na função. Sabe-se que é difícil resistir a Lula. O relatório que li confirma que o governo Francês já ofereceu o “Rafale”, um dos caças em análise, a preços competitivos, comparáveis aos pagos à Dassault pela força aérea francesa. Americanos e suecos também teriam feito propostas sedutoras.

O brigadeiro Dirceu Novo, presidente da Comissao Gerencial do Projeto, lembra, por exemplo, da transferência de tecnologia. O Brasil manteria o domínio da escolha do sistema de armas. A participação da indústria nacional é obrigatória. Não me aprofundo nos detalhes técnicos pois sua compreensão é inacessível a gente como nós.

Mas, gente, a FAB vem aperfeiçoando sua metodologia de negociar desde 1980, quando o Brasil participou do projeto AMX, italiano. Os caças produzidos em colaboração com a Itália foram testados na guerra de Kosovo. São os jatos 145 e 190 da Embraer em operação. O domínio de armas significa que o Brasil pode utilizar armamento de sua escolha ou desenvolvimento. De passagem, aviões civis da Embraer, de conceito firmado, servem a dezenas de linhas aéreas internas de inúmeros países. É só o governo confiar e os técnicos brasileiros corresponderem.

Imagine 26 mil documentos, uma pequena montanha. O que foi produzido no trabalho realizado pela FAB, é que os aviões a serem comprados devem ser compatíveis com a defesa das fronteiras terrestres e marítimas no futuro próximo de um país que tem muito a proteger. O estudo e relatório devem ser concluídos no próximo mês. E, lógico, que conterá uma abertura, uma síntese compreensível aos leigos com todos os elementos para apoiar e facilitar a decisão política do presidente.

O modelo escolhido substituirá gradualmente os caças em uso, será um investimento para os próximos 30 anos. Para muitos mandatos presidenciais.

A decisão que precisa ser adotada com um pensamento estratégico e considerando o Brasil futuro. É uma enorme responsabilidade que marcará o futuro do país e o atual governo.

No documento ao qual tive acesso, o processo de desativação, de encostar os velhos aviões, já devia ter começado. Não tive meios para confirmar a informação. Mas a questão toda já criou muito problema a partir do se circula - que a fábrica francesa será salva da falência se a escolha for pelo avião de Paris. A frota a ser adquirida será de caças de múltiplos empregos e deve começar a operar em 2015 por 30 anos. Ao ler e estudar o documento da Aeronáutica comprava-se com extremo rigor no processo de seleção. O primeiro lote do caça escolhido, não indicado no documento, deve ser entregue a partir de 2014.

A Comissão do Projeto já realizou completa análise mantendo o foco nos aspectos comerciais, técnicos operacionais, logísticos e industriais e transferência de tecnologia. Já foram realizadas visitas técnicas e vôos de avaliação. A Comissão já recebeu ofertas revisadas para tornarem mais atraentes os aparelhos oferecidos, A Aeronáutica fez questão da transparência do processo de seleção. Está tudo no internet. A Comissão recebeu novas propostas as quais está avaliando. É negócio no valor de muitos bilhões. Lula teria avisado que tomaria a decisão antes do fim do mês.